sábado, 25 de agosto de 2012

ERP

[...]Erp raspou com as mãos a pedra encravada no morro. O musgo enegrecido encheu a ponta dura de suas falanges. Enquanto enrolava o líquen nos dedos, formando uma pequena bola, olhou à sua volta. Jogou a bolota verde na boca aberta e tentou imaginar como seria aquela paisagem algumas décadas antes. Fechou os olhos por um instante, buscando visualizar as árvores que um dia abundaram naquela colina.

 Desde que a guerra começara, nenhum humano vivo fora mais visto sob a luz do dia. A camada de ozônio chegara a quase acabar. Nenhum representante da espécie humana podia mais receber a luz do sol diretamente na pele. Forçadamente, nessa época, os cientistas buscaram desenvolver uma raça de humanóides cuja pele não fosse sensível à radiação ultravioleta. Um congresso de estudiosos delineara como deveria ser a nova raça de seres que substituiriam os humanos quando fosse necessária a sua presença sob a luz cancerígena do sol.

Deveriam ser fortes para serem capazes de executar qualquer serviço braçal; sua capacidade de raciocínio precisava ser a menor possível, de modo a obedecerem sem discussão às ordens recebidas por rádio. Sua alimentação consistiria basicamente de liquens e musgo, pois cuidariam da produção de alimentos para a humanidade. Para um maior controle da população, seriam estéreis.

 Assim foram os primeiros humanóides. Com o passar do tempo, entretanto, alguns geneticistas, ávidos por lucro ou fama, escudados pela total falta de uma legislação que protegesse a nova raça, principiaram a inserir algumas modificações.

O ano era o de 2019. Já não havia mais a menor condição de um humano receber um único raio de luz do sol. A camada de ozônio até poderia se recompor, mas seriam necessários muitos anos até que isso ocorresse. No cenário científico, todos os países do globo já eram capazes de modificar raças geneticamente. Um a um, primeiro de maneira sigilosa, depois abertamente, os países começaram a apresentar os seus humanóides.

Sob todos os aspectos, o representante espanhol era o melhor: mais forte, de couraça mais rígida, com sexo definido, entretanto incapaz de se reproduzir, com a capacidade intelectual de um chimpanzé e dócil.

Aos poucos, óvulos desse espécime foram contrabandeados para todos os outros países. O homem finalmente assumira o poder de Deus e os humanóides abundaram sobre a face da Terra.

A despeito da iminência da catástrofe, a emissão de poluentes para a atmosfera não diminuiu um grama sequer. As descargas eram cada vez maiores. Simultaneamente, a construção civil passou a trabalhar nos subsolos. As cidades começaram a se aprofundar cada vez mais. Cerca de uma vintena de anos depois, o homem já não podia mais sair à luz do dia. As cidades eram todas subterrâneas. Não se faz necessário perder muito tempo explicando que principalmente devido ao câncer de pele, a população mundial caíra para cerca de um bilhão de habitantes no ano de 2020. A produção de humanóides estava a todo vapor. Era necessário que os corpos fossem levados a um crematório. Não havia ainda os enormes cemitérios debaixo da terra. Temia-se, com razão, que se tantos corpos fossem enterrados, acabassem por contaminar os lençóis aquáticos subterrâneos.

A vida praticamente continuava a mesma. A diferença era que humanóides imunes ao câncer de pele executavam todo trabalho sobre a superfície. Humanos apenas nos subterrâneos.

Algumas cidades de veraneio foram edificadas na superfície, cercadas por altos muros e cujo teto era de vidro opaco à radiação ultravioleta. Mas eram apenas pousadas turísticas. Ninguém vivia ali definitivamente.
Para facilitar a locomoção, as residências no subsolo eram interligadas por dutos através dos quais corriam cápsulas monitoradas por uma rede de supercomputadores. Cada casa possuía seu tubo com uma cápsula. Bastava digitar o destino em uma tela dentro do equipamento e deixar-se levar. Em questão de instantes, o passageiro chegava ao destino.

As cápsulas geralmente eram utilizadas individualmente, mas comportavam com tranqüilidade até três passageiros. Eram cilindros de cerca de três metros de altura, por um de diâmetro, completamente acolchoados na parte de trás, com um encosto para a cabeça. A porta, que corria lateralmente, dando à volta ao resto do veículo, continha o painel do computador de bordo, que possibilitava mudar o destino, caso interessasse ao passageiro. Cada cidade possuía um centro de controle de tráfego, operado por um supercomputador, que impossibilitava as colisões. Se vistos por um aparelho de raio-x, os túneis de transportes enlouqueceriam qualquer um. Por questões de átimos de segundos, dois aparelhos passavam por um cruzamento, sem se tocar. Em uma cidade com um milhão de habitantes, por exemplo, o tráfego era ininterrupto. Entretanto, devido ao controle preciso do computador, não ocorriam paradas, mesmo que todos os passageiros resolvessem mudar de direção ao mesmo tempo e se dirigissem a um mesmo local, o controle diminuiria a velocidade de uns, aumentaria a de outros, faria com que alguns fizessem um caminho mais longo, de modo que todos chegariam ao destino, sem interrupções do tráfego.

No caso de uma reunião de família na casa de alguém, por exemplo, o computador avisaria ao passageiro que dispunha de tantos segundos para abandonar o veículo ao chegar a seu destino, pois o casulo seria recolhido para a chegada de outro. Caso o passageiro levasse um tempo maior, um alarme soaria, os outros cilindros teriam sua trajetória renovada de modo a manter o fluxo. Entretanto, enquanto o passageiro não abandonasse o veículo este não seria recolhido, a menos que fechasse a porta e autorizasse um novo destino.

Os cilindros eram movidos a ar. Justamente devido ao grande controle efetuado pelo computador, o desprendimento de energia era mínimo. Um veículo, ao se deslocar, deslocava o ar à sua frente, impelindo outro trecho de tubo. Eram como dardos em uma zarabatana. Não havia espaço para o ar escapar lateralmente.

O sistema de transporte por tubos talvez fosse a maior maravilha desde que a humanidade passara a habitar o subterrâneo.

Na superfície, o espaço que antes pertencia às grandes cidades passou a ser ocupado por intermináveis plantações e fazendas de criação, todos operados à distância e manuseados pelos humanóides. Mas havia um problema.

Os primeiros humanóides foram gerados no ventre de mães humanas voluntárias. Depois, algumas fêmeas foram utilizadas para gerá-los. Entretanto, uma parcela destas não suportava a tarefa por muito tempo. O período de gestação era de quatro a cinco meses. A fêmea estava apta a procriar a partir dos cinco anos de idade. Geravam, em média, quatro filhos e depois passavam a sofrer abortos espontâneos. Não serviam para a procriação, nem outra coisa. Qualquer macho era mais forte. Mas ainda viveriam mais cerca de trinta anos! A  solução era o sacrifício.

Devido à crueldade do ato de se eliminar um ser vivo, simplesmente pelo fato de não servir mais para a reprodução, surgiram as primeiras organizações de defesa dos humanóides. Essas organizações foram as primeiras a organizá-los em famílias e inserir a modificação que os tornaria reprodutivos.

Nesse ponto surge o inesperado. A Lei de Morphy. A terceira geração sexuada de humanóides surgiu com inteligência.

No ano de 2059 aconteceu o primeiro congresso mundial dos humanóides. Exigiam serem tratados com respeito e humanidade. Não seriam mais escravos, não admitiriam mais serem forçados a executar trabalhos perigosos, nem jornadas exaustivas de até dezoito horas de trabalho. Teriam direito a freqüentar qualquer curso, disputar qualquer vaga de trabalho, ainda que fosse de execução exclusiva de humanos. E. principalmente, que a humanidade passasse a tratá-los como iguais. Exigiam serem chamados a partir dali como “irmãos da superfície” ou simplesmente heliófilos. Eram reivindicações justas, mas a sua aceitação colocava em xeque a sua própria existência.

A resposta dos governantes da humanidade foi simples: ordenaram que tropas eliminassem os líderes revoltosos. Estava iniciada a guerra entre as raças: a primitiva e a mutante; a criadora e a criada. A guerra entre os naturais e os evoluídos.

A humanidade desenvolveu uma nova raça de mutantes, ainda mais obtusa que a anterior. Suas mentes eram vazias. Eram verdadeiros autômatos. Sua função era encontrar e matar os insurretos.

Erp montou no veículo e ligou o motor. A máquina era uma espécie de motocicleta sem rodas. Na parte de baixo, um poderoso eletroímã gerava um campo magnético tão forte que elevava o veículo a cerca de meio metro de altura. Duas turbinas, uma em cada lateral, puxavam o ar da frente para trás do equipamento, o que fazia com que se deslocasse, usando o ar como uma corda. Um aquecedor de microondas, ao ser ligado, poderia aquecer o ar que passaria pelas turbinas, o que faria com que o aparelho se deslocasse a uma velocidade ainda maior e, dessa forma, elevar-se a uma altura considerável. Esses veículos foram chamados inicialmente de eletrociclos, entretanto, devido à semelhança, passaram a chamá-los de cavalos.

Michelle desligou o monitor, balançando a cabeça.

- Guerra estúpida! – exclamou – Gente estúpida...

No painel do computador que desligara, a imagem da bomba que acabara de detonar sobre a cidade dos humanóides ainda estava impressa em seu cérebro.

Desconectou a tela dobrável e, levando-a consigo, encaminhou-se à sala do chefe. Outra das maravilhas do subterrâneo, as telas dobráveis haviam chegado para substituir o papel. Na verdade, haviam sido criadas para servirem como monitores de computadores, mas com a guerra e a dificuldade de obtenção da madeira, haviam sido redescobertas.

Entrou inflamada na sala do Diretor de Imagens do Ministério da Guerra.

- Veja isso! – exclamou – com esses ataques só fazemos aumentar ainda mais o tempo de recomposição da camada de ozônio!

Enquanto falava, desdobrava a tela sobre a mesa do chefe.

- Isso não é o importante... – contemporizou o Diretor – devemos nos ater às baixas inimigas.

- Parece que destruímos uma cidade... – a voz suavizou, mas o semblante ainda estava carregado – Só tem um porém...

- Qual?

- Apesar do ataque, não vi nenhum humanóide nos escombros, ou sequer um movimento. Talvez estejamos bombardeando alvos inúteis.

O homem à frente de Michelle fitou-a irritado.

- Nossa inteligência confirmou a importância do alvo.

- Nós também somos essa inteligência – retrucou – talvez estejamos buscando informações nos canais errados...

- Basta! – rosnou – volte para sua mesa antes que a disponibilize para outro setor.

Michelle enrolou a tela e saiu da sala. Não conseguia compreender como seus superiores poderiam ser tão obtusos. Parecia tão óbvia a possibilidade de que as imagens e os relatórios que recebiam da superfície estivessem distorcidos.

Encaminhou-se para a saída do pavimento e entrou no tubo que a levaria ao observatório dos satélites. Precisava confirmar suas suspeitas.

Erp sobrevoou a área do bombardeio. As maquetes de barro haviam sido totalmente destruídas. Como os humanos poderiam ser tão estúpidos? A radiação mal afetava os heliófilos. No máximo causavam uma leve enxaqueca, um ligeiro mal-estar. Ainda bem que os inimigos não haviam descoberto isso.

Toda a área estava calcinada. As bombas de calor haviam executado seu serviço de modo satisfatório. A praga das plantas parecia ter sido eliminada.

Cerca de oito anos antes, os heliófilos haviam descoberto uma nova praga que estava acabando com as plantações. Os biólogos tinham elementos suficientes para crer que alguma espécie de microorganismo que se alimentava do lixo humano evoluíra para uma espécie que estava acabando com a vegetação. Apenas as bombas de calor dos humanos pareciam ter o poder de dizimá-los. Chamavam a esses microorganismos de biopraga, simplesmente.

Para os heliófilos, cada ser vivo na natureza contribuía para a evolução do todo. Mesmo os humanos eram parte da evolução do planeta. Cada ente vivo possuía um lugar específico na vida do planeta. Entretanto, devido às guerras, à errada manipulação genética, algumas criaturas não se enquadravam na evolução: eram as biopragas. Todas eram tratadas do mesmo modo: precisavam ser eliminadas completamente.

Alguns dos pensadores heliófilos consideravam os humanos como biopragas. Por sorte, nem todos.

Erp era um cientista respeitado por suas conquistas, entretanto, devido às suas idéias de convivência pacífica com os humanos, não era muito ouvido. Suas idéias às vezes sequer chegavam a ser cogitadas pelo Conselho.

Se considerado nos padrões humanos, Erp teria cerca de trinta anos de idade. Nos padrões heliófilos, era um homem inteligente, porém sensível demais.

Alguns anos antes, conseguira arregimentar um grupo de simpatizantes e agiam praticamente sozinhos. O Conselho sabia da existência do grupo, mas ignorava suas ações, enquanto não comprometessem as atividades da sociedade ou a segurança da comunidade.

O grupo de Erp conseguira infiltrar-se nas comunicações dos humanos com os satélites. De início, alguns pretenderam eliminar as comunicações, mas Erp fora contrário à idéia. Seria muito mais proveitoso se enviassem imagens falsas aos humanos.

Erp recolheu algumas amostras do solo e da vegetação calcinada. Ergueu vôo com seu cavalo e abriu um saco com sementes, espalhando-as ao sabor do vento, sobre a área bombardeada. Em breve retornaria para ver as mudas.

As sementes pré-germinadas eram uma descoberta sua. Bastava que entrassem em contato com o solo para começarem a germinar. Em uma semana o vale estaria coberto de pequenas mudas.

Michelle entrou no observatório dos satélites. Era um enorme salão equipado com inúmeros computadores, cerca de vinte quilômetros abaixo da superfície. Devido à sua importância para a sobrevivência das comunicações e, conseqüentemente da humanidade, era uma das áreas mais seguras do subterrâneo.

Rebuscou cada transmissão de imagem de cada satélite. Todas pareciam fornecer a mesma imagem, os mesmos cenários. Antes do bombardeio, uma verdadeira comunidade de humanóides. Diversas máquinas e equipamentos, de transporte de pessoal, de maquinário, de armamentos. Em um determinado ponto, a câmera estacionou sobre um grupo de soldados, fortemente armados que marchava, aparentemente exercitando-se. Suas pesadas botas esmagavam a relva.

- Onde foi que eu já vi essas imagens? – perguntou-se de modo automático, como se estivesse falando com outra pessoa.

- Eu também me perguntei isso horas atrás... – a voz a seu lado quase a surpreendeu.

Era Sergei, o operador do satélite.

- Vamos ver as outras imagens que recebemos de tropas dos humanóides de um mês para cá! – ordenou Michelle.

Em cada local que bombardearam havia movimentação de tropas antes do bombardeio. Contudo, depois do  bombardeio, nem um corpo podia ser divisado.

- Comentei isso com o General Cardoso um dia desses e ele respondeu que o poder de destruição das bombas de calcinação é tão grande que os corpos desintegram... – comentou o rapaz.

- E você se convenceu? – indagou Michelle.

- Não... – fez uma careta e continuou – mas obedece quem tem juízo...

- Nem eu – emendou a moça.

- Além disso, não há uma marca de um corpo calcinado sequer... nenhuma vítima. Muito estranho.

Uma das armas mais eficientes dos humanos no combate aos mutantes eram os absorvedores. Autômatos sobre eletrociclos, munidos de diversos tentáculos. Bastava que conectassem um desses tentáculos a qualquer ser vivo e absorviam sua eletricidade. A conseqüência da absorção variava de acordo com a potência utilizada. Ia desde um simples desmaio até a morte.

Essas máquinas eram capazes de deslocar-se à mesma velocidade dos eletrociclos. Sua bateria era carregada pela energia que absorviam. Por esse motivo, os heliófilos as chamavam de “parasitas energéticos”. [...]

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