sábado, 25 de agosto de 2012

Prova de Vida (do livro Contos de Vida - e Vida Após a Vida)


O zumbido da máquina martelava incessantemente em seu cérebro. Não podia precisar exatamente de que lado vinha o ruído e tentou não dar importância. A dor no peito é que realmente incomodava.
 Estava deitado sobre algum tipo de cama alta. Não conseguia abrir os olhos nem se mover. Aos poucos, foi deixando-se envolver pelas recordações mais distantes.
 Viu-se sendo carregado nos braços fortes do pai. Em dado instante, o homem o colocou sentado sobre seus ombros. Dali de cima, olhava os outros adultos como se fossem seus pares. Passou as mãos nos cabelos negros e lisos do pai e imaginou-se um dia carregando seu filho da mesma maneira.
 “Engraçado! – pensou – Lembro de ser carregado nos ombros pelo meu pai e não recordo se um dia carreguei um de meus filhos assim...”
 Lembrou fatos inexpressivos da infância, como o dia em que tentara – e desistira definitivamente – empinar uma pipa.
 A linha embolando nos dedos, amarfanhando nas mãos, o brinquedo irritante que se negava a subir, a raiva surda e um pequeno bolo de papel, linha e varetas de bambu abandonadas ao solo.
 A dor no peito aumentou a um ponto insuportável. Tentou manter-se concentrado nas recordações. Jamais tivera tanta vontade de recordar velhas imagens como naquele momento.
 Lembrou da mãe, carinhosa e tranqüila, servindo a magra refeição. Que vontade de abraçá-la novamente!
 A mãe morrera quando ainda não completara dez anos. O pai deixou Elias e os dois irmãos menores com uns parentes e desaparecera no mundo. Passara o resto da infância imaginando que o pai só voltaria no dia em que encontrasse uma nova esposa exatamente idêntica à falecida. À noite, junto aos irmãos, no quarto improvisado na casa dos tios, inventava histórias em que o pai enfrentava dragões e feiticeiras para resgatar a irmã gêmea da falecida esposa.
 Os maus tratos encheram a infância de Elias. Agora, deitado de olhos fechados sobre algum leito de hospital, rememorava a criancice e perdoou os tios. Não fossem os maus tratos não teria fugido de casa aos doze anos.
 Improvisou uma caixa de engraxate e iniciou uma profissão laboriosa e honesta. Vivia nas ruas, em qualquer lugar onde pudesse passar a noite. Durante o dia, engraxava os pés dos doutores que viajavam nos trens da Central do Brasil. Para o menino, qualquer pessoa que usasse sapatos era um doutor.
 Adquiriu o hábito de engraxar primeiro, perguntar depois. Nem sempre recebia o justo pagamento, mas ao menos recebia algum trocado.
 No fundo falso da caixa, escondia o dinheiro. As economias tinham uma razão: compraria uma casa para si e os irmãos.
 Certo dia pensou ter juntado o suficiente. E descobriu que antes de pensar em comprar uma casa precisaria aprender o valor real das coisas.
 Entrou em uma agência bancária para financiar a casa própria, como vira nos anúncios e foi alvo do sorriso da atendente. Não poderia.
 - Você ainda é muito criança! – sentenciou a moça – Volte para a escola, menino.
 Em poucas e cruéis palavras, a moça explicou que precisaria engraxar muitos sapatos até poder sentar ali novamente.
 Saiu da agência com lágrimas nos olhos e um aperto no coração. Seus irmãos não poderiam esperar tanto.
 Passou a comprar e vender de tudo um pouco: biscoitos, canetas, borrachas, cordões de sapatos, e toda miudeza que pudesse carregar consigo.
 Inúmeras vezes foi assaltado, mas mantinha as economias no solado do calçado surrado, que escapava sempre ileso das investidas dos algozes.
 Por conta própria matriculou-se em uma escola pública à noite. Certa noite de chuva, depois do fechamento da escola, pulou o muro de volta para dormir abrigado do vento frio.
 A dor no peito voltou a incomodar. Não eram boas recordações. Não importavam as marcas e cicatrizes que carregava.
Lembrou o dia em que comprou o barraco no alto do morro. Era a morada mais humilde que alguém poderia imaginar, mas era sua. A sua casa. Estava com quinze anos. Voltou para a casa dos tios em busca dos irmãos e não encontrou ninguém.
 Anos mais tarde descobriu para onde haviam se mudado. O irmão caçula, Zezinho, morrera de pneumonia, menos de um ano após sua partida. Pedro, que então estava com dezesseis anos, mal o reconhecera. Friamente, disse que preferia continuar com a vida como estava.
 - Que vontade de abraçá-los novamente! – exclamou.
 “Como o tempo passa! Inexoravelmente! Já não posso mais abraçar meus irmãos pequenos. Nunca mais!” – concluiu tristemente.
 Foi servente de obras, faxineiro, ladrilheiro, pintor, ajudante de mecânico, e tantas outras coisas que já não lembrava mais.
 Certo dia entrou em um banco no centro da cidade e viu a funcionária fazendo uma cópia de um texto. Não soube explicar bem o motivo, mas a mulher o fascinou. Mais tarde concluiria que era muito parecida com a falecida mãe.
 Ficou ali, observando o azáfama da moça, que finalmente notou o olhar insistente do rapaz.
 Como se soubesse no íntimo que era daquilo que o jovem precisava, a funcionária fez mais uma cópia e deu nas mãos de Elias:
 - São alguns contos de um amigo da minha sobrinha. Ou talvez não. Parecem muito profissionais para alguém desconhecido. Mas ao menos são uma leitura agradável. Tome.
 Agradeceu e saiu apressadamente da agência, abraçando os papéis que a mãe lhe dera.
 A leitura não tinha nada de excepcional. Mas eram contos que falavam de alguma coisa além da vida, uma vida além da morte. E de Deus.
 Aquele presente talvez tivesse sido a primeira coisa que alguém lhe dera espontaneamente na vida. Sem pedir nada em troca.
 Um dos textos dizia que a vida humana se resumia em dar e receber Amor. Que no final da vida, somente isso iria importar: o quanto se amou e o quanto se foi amado.
 “Meu Deus! Será que tive uma boa vida?” – perguntou-se.
 “Não consegui manter meus irmãos unidos a mim, não consegui reencontrar meu pai, não consegui ser ninguém importante, jamais pude fazer uma caridade sequer...”
 Enquanto pensava assim, imagens há muito esquecidas povoaram sua mente, como das inúmeras vezes em que dividira o pão que levara para almoçar com algum companheiro de obra; as incontáveis ocasiões em que se dispusera a ouvir alguém apenas para que o outro pudesse desabafar.
 - Você teve uma boa vida sim, meu filho...
 Abriu os olhos e viu o doce rosto da mãe, que lhe afagava os cabelos.
 A seu lado, o pai e o irmão caçula.
 - Papai! Zezinho! – o coração não cabia dentro do peito de tanta alegria.
 Sentou-se na beirada da cama e abraçou a mãe, o pai e finalmente o irmão, que olhando profundamente em seus olhos, disse:
 - Cada história que contou para seus filhos, eu estava lá também ouvindo; cada abraço que lhes deu, eu também recebi...
 No quarto do hospital, as enfermeiras desligaram os aparelhos e cobriram o rosto do corpo morto com o lençol.


Em homenagem à amiga Jeane e sua tia. 

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