sábado, 25 de agosto de 2012

Perdido (título provisório)


A quem visse, pareceria estar defronte a um acometido de ataque de epilepsia. Entretanto, para azar do rapaz, somente naqueles momentos possuía algum tipo de lucidez.
Estava ao lado de um amigo. Suas mãos começavam a tremer involuntariamente. Seu corpo todo estremecia, mal conseguia se manter de pé. Sua língua enrolava e sua voz saía na forma de um grunhido que aprendera a controlar, podendo se fazer inteligível a quem o conhecesse.
Colou as costas à parede e sentiu que era ali. Percebeu a poça d’água formada na calçada e colocou as mãos na lama. Aquilo o acalmava.
- É aqui. Tenho certeza que é aqui. Finalmente está acabando...
- Como pode saber? – indagou Paulo.
Fazia um esforço enorme para falar. Não o gastaria respondendo banalidades. Com o corpo em convulsões, entrou no shopping.
Era um shopping de produtos naturais, plantas, ervas, artesanato. Um imenso galpão, cujo espaço interno havia sido dividido em diversas pequenas lojas, todas de alvenaria. Os corredores estavam amplamente enfeitados com plantas. Naquele, em especial, diversos vasos semelhantes a bacias, sobre pedestais de cerca de um metro de altura, com diversas plantas, cuja terra estava completamente encharcada. Colocou as mãos dentro de um dos vasos e acariciou as plantas. Aquilo o acalmava. Talvez colocar a mão na terra molhada, ou na água, ou ainda simplesmente o contato com as plantas, não saberia dizer, mas apesar de todo o tremor que sacudia seu corpo, sentia-se bem e o tremor diminuía de intensidade.
Os corredores eram todos idênticos, meio em diagonal, como as lojas, de modo que pareciam terem sido construídas sempre aproveitando a metade de trás da parede da loja vizinha. Assim, quem entrava no corredor, via a frente de todas as lojas, com seus letreiros luminosos, todos discretos, seguindo um único padrão. Todas as fachadas das lojas usavam pastilhas de cerâmica vermelha, lembrando pequenos tijolos. Tijolinhos. O passeio, bem como os bancos e os vasos de planta, eram todos de concreto. Para corrigir a posição das lojas, o arquiteto elaborara uma estreita calçada, coberta de seixos brancos, apenas para que compusessem uma visão retilínea do passeio.
O rapaz foi caminhando diretamente em direção à ultima loja do lado esquerdo. Sabia qual o corredor e agora sabia qual era a loja. Parou defronte a porta de madeira com a metade superior de vidro, onde podia-se ler: Aromas Naturais. Plantas e folhas aromáticas. O tremor pareceu acalmar um pouco. As idéias embaralhavam na mente quando isso acontecia.
Paulo o observou e teve pena. Como poderia acontecer algo semelhante a alguém tão simples e pacato?
- É aqui. Nem acredito que isso está terminando.
- Vamos entrar?
- Medo...
Paulo sabia que ele queria dizer “Estou com medo”, todavia desejava economizar o esforço da fala.
- Mas não podemos esperar aqui fora o dia todo...
Lá de dentro, pelo vidro, uma moça percebeu a presença dos dois. Não aparentavam serem um dos freqüentadores do shopping. Resolveu ver o que desejavam antes que entrassem. Aproveitaria a saída da cliente que acabara de comprar algumas ervas aromáticas para fabricar seus incensos.
- Acompanho você até a porta.
Somente no momento em que a vendedora abriu a porta da loja para que passasse, é que Dora percebeu os dois homens parados à sua frente. Um deles, aparentando mal de parkinsons, olhava profundamente em seus olhos. Parecia reconhecê-la. E ele também não parecia estranho. De onde o conhecia?
- Dora? Sou eu... veja... – e mostrou o tremor nas mãos, como se aquilo pudesse fazê-la lembrar.
Dora olhou para Paulo, tentando encontrar alguma explicação. Não conseguira entender o que o outro estava falando.
Compreendendo o que a moça sentia, Paulo repetiu:
- Ele está dizendo: “Dora? Sou eu... Veja!”. – e prosseguiu, diante do olhar aflito do rapaz. – Ele está procurando por você há algum tempo. Diz que é a única pessoa capaz de levá-lo de volta para casa.
O olhar do rapaz fez com que Dora dissesse que lembrava. Além disso, era estranho o fato dele saber seu nome.
- É você? – Não sabia o que mais dizer, abriu um sorriso e continuou – Nem acredito!
O Rapaz abriu um sorriso e caminhou até a moça, que ainda se encontrava sobre o degrau que acessava a loja. Em vista disso, ao abraçá-la, apertou seu rosto contra a barriga da moça.
Paulo observou o encontro dos dois e não pôde deixar de lembrar de quando o conhecera.
Estava procurando emprego, jornal debaixo do braço. Deixara a estação de trem e, de relance, reparara no rapaz com o olhar perdido no vazio, descalço, cabelos desgrenhados, camisa e calça de algodão, como um pijama barato.
O dia fôra como os anteriores. Deixara cópias do currículo em diversas empresas, mas de concreto, absolutamente nada. Saíra de casa com esperança de arranjar ao menos um bico. Não tinha dinheiro para voltar. O dia findara, o sol já desaparecia por trás dos edifícios do centro da cidade. Atravessou a praça Mahatma Gandhi em direção à Cinelândia. Viu novamente o rapaz, dessa vez sentado em um dos bancos do passeio. Dessa vez, seus olhares se cruzaram.
Paulo não era nenhum prodígio de memória, muito menos era de guardar fisionomias. Mas algo naquele olhar aparvalhado lhe chamara a atenção, desde cedo, na estação de trens.
Enquanto caminhava na direção de onde estava sentado, pois era o caminho por onde seguiria, o rapaz manteve o olhar fixo no seu. Lentamente o jovem foi iniciando um tremor pelo corpo, mãos e pernas. Em poucos instantes, estava caído no chão, debatendo-se em um estertor, que de início Paulo pensou tratar-se de um ataque de epilepsia.
Paulo correu em seu auxílio ao perceber que chocava seguida e violentamente a cabeça no meio-fio. Ao abaixar-se para protegê-lo, percebeu que o rapaz estava consciente. Olhou-o e balbuciou algo que Paulo não conseguiu compreender, mas imaginou que o estivesse pedindo por algum remédio que deveria estar no bolso da camisa, pois sua cabeça se agitava para o lado esquerdo do corpo, com os olhos fixos nos dele.
Paulo apoiou a cabeça do homem nas próprias pernas, e começou a apalpar os bolsos do rapaz em busca do que pedia. Sua língua estava enrolada em direção ao céu da boca, mas ainda assim, insistia em tentar falar. Paulo pediu aos inúmeros observadores que chamassem uma ambulância.
Tentando acalmá-lo, Paulo percebeu que havia um hematoma na cabeça do rapaz, de onde escorria um pouco de sangue. Uma moça sacou um celular da cintura e discou, aparentemente para o Corpo de Bombeiros. Desligou, tocou no ombro de Paulo e disse que chegariam logo.
O rapaz fez um tremendo esforço e novamente balbuciou, mas dessa vez Paulo compreendeu:
- Me ajuda! Me tira daqui... me leva para casa...
Paulo finalmente percebeu que não era um ataque de epilepsia. Parecia algo como um ataque de Mal de Parkinsons. O rapaz estava sóbrio e consciente.
Quase que de modo automático, ajudou o rapaz a erguer-se. Os estremecimentos não cessaram, mas eram cadenciados. Paulo passou um dos braços do rapaz sobre o próprio ombro e começou a caminhar com ele. Não sabia bem por que o fazia, mas o rapaz foi se acalmando. A moça que ligara para os bombeiros indignou-se:
- Você não pode levá-lo. A ambulância já está vindo...
- Estou melhor... só preciso de um pouco de exercício... já, já volto ao normal...
A voz ainda estava embargada, como a voz de quem sofreu um derrame. A língua parecia dobrada na boca. Era visível que fazia um esforço notável para ser compreendido. Paulo resolveu ajudá-lo a chegar em casa.
- Para onde quer que o leve?
- Trem... para casa...
Normalmente, Paulo percorreria o trecho entre o Passeio Público e a Central do Brasil em cerca de vinte minutos. Quase duas horas depois, aproximavam-se do terminal. Era como se estivesse carregando um boneco de molas de setenta quilos. A cada passo que davam o rapaz parecia desequilibrar. Suas pernas mal sustinham o corpo. Somente aí é que Paulo se deu conta de que não tinha o dinheiro da passagem.
 - Não me leve a mal, mas não posso levá-lo até sua casa. Diga em que ônibus o coloco e sigo meu caminho...
- Me leve... para casa... – sua voz continuava arrastada e quase ininteligível, mas Paulo estava começando a compreendê-lo com mais facilidade.
- Eu não sei onde você mora! – estava a ponto de perder a paciência – nem mesmo sei como vou fazer para chegar à minha...
- Do... que... precisa?
- Ora bolas! Dinheiro para a passagem seria um bom começo...
O homem olhou profundamente nos olhos de Paulo. Aquele olhar era profundo e suave ao mesmo tempo. Em momento algum o estertor cessara. Suas roupas estavam encharcadas de suor.
Com a mão direita trêmula, usou os dedos indicador e polegar para apontar os degraus da entrada do Metrô, defronte ao Campo de Santana.
- Me ajude... a sentar ali...
Imaginou que deveria deixá-lo sentado nos degraus, mas o homem manteve a mão esquerda firmemente presa à sua. Ficou ali, de pé ao lado do sujeito que tremia incessantemente, e à essa altura exalava um forte cheiro de suor.
Poucos instantes depois, uma senhora aparentando cerca de sessenta anos surgiu ao pé da escada. Viu os dois homens atrapalhando a passagem e fez menção de retornar. Algo em seu íntimo, entretanto, fez com que abandonasse a idéia de voltar e prosseguiu na direção dos dois. O homem apontou seus dois dedos da mão direita na direção da mulher, como fizera antes com Paulo:
- De... que... precisa?
- Ahn? – a mulher não compreendeu o grunhido.
- De... que... precisa? – repetiu ainda mais pausadamente.
As feições da mulher amainaram. Sorriu e respondeu:
- De nada, meu filho.
- Eu... preciso... duas... passagens... trem... – disse, apontando novamente os dois dedos, polegar e indicador, para a bolsa da mulher.
A mulher estacou diante do homem trêmulo. Estava a ponto de sair correndo e gritando por socorro. Paulo preparou-se para correr. Se a velha gritasse, seguramente seria preso como assaltante.
- Por... favor... – emendou o rapaz.
Alguma coisa naquela frase fez com que a mulher novamente mudasse de idéia. Abriu a bolsa, retirou dois bilhetes ainda unidos pelo picote e entregou-os na mão do rapaz.
Ao receber os bilhetes, o rapaz segurou com as duas mãos a mão da mulher.
- As... mãos... carinho... curam. Às vezes... carinho... tão bom... como remédio caro...
Pegou a mão da mulher e levou até a própria cabeça. Sem saber como reagir, a mulher alisou os cabelos curtos do homem sentado no degrau à sua frente. Seus cabelos eram quase raspados. Chegavam a espetar. Mas a sensação de acariciar o crânio do pobre rapaz foi tão boa, que ela acariciou-a longamente. Aos poucos, os estertores foram diminuindo, como se ele adormecesse. Até que ficou completamente imóvel, novamente com o ar aparvalhado que Paulo vira na estação pela manhã.
Seus olhos agora fitavam o vazio. Era como se estivesse hipnotizado. A mulher olhou para Paulo e comentou:
- Coitado do seu amigo. O que ele tem?
- Não sei. Não o conheço. Estava ajudando-o a chegar em casa, mas não tinha como pagar a passagem...
- Agora tem... – disse a mulher enquanto se afastava, já absorta nos próprios pensamentos.
Paulo pegou um dos bilhetes da mão do rapaz e afastou-se alguns passos. Estacou e retornou. Deixaria o rapaz sentado no banco onde o vira pela manhã. Alguém deveria reconhecê-lo se o deixasse lá.
Puxou o rapaz pelo braço que levantou-se de maneira delicada, sem o menor estertor. Parecia um autômato. Era só empurrá-lo. Os últimos metros até a estação foram passados de maneira tranqüila e suave. Não fizera o menor esforço. Bastava conduzí-lo.
Já deviam ser oito da noite quando sentou o rapaz no banco que o vira pela manhã. Paulo estava com o estômago vazio desde a manhã. Sentia uma fome terrível.
Sentou-se a seu lado enquanto aguardava a chegada do trem. Decidiu que embarcaria no primeiro que chegasse, deixando o rapaz no banco.
A fome apertou ainda mais. Ficou imaginando que o rapaz também deveria estar morto de fome. Provavelmente ainda mais que ele. Olhou seu rosto. Era tão magro. Quantos anos deveria ter? Talvez uns trinta. Talvez menos. A doença poderia fazer com que aparentasse ser mais velho. Ficou penalizado e arrependeu-se de não tê-lo deixado no hospital, logo ali em frente. Lá saberiam tratar dele. Ficou pensando em voltar e deixá-lo lá, mas não teria mais como voltar para casa. Não seria justo abandoná-lo ali, na estação. Poderia ter novamente um ataque daqueles e cair nos trilhos. Resolveu levá-lo para sua casa. No dia seguinte o deixaria no hospital do seu bairro.
Quando o trem chegou, conduziu-o para dentro do vagão e sentou-se a seu lado. A mulher certamente reclamaria. A sogra então, que era quem os estava sustentando, nossa! Falaria pelos cotovelos. Podia até imaginar.
Cerca de quinze minutos depois, os estertores recomeçaram. Do mesmo modo como Paulo presenciara antes. Seus olhos pareciam retomar o brilho, parecia começar a tomar ciência do mundo que o rodeava e, à medida em que se conscientizava, os estertores aumentavam de intensidade. Olhou novamente para os olhos de Paulo e indagou:
- De... que... precisa?
Paulo entendeu que seus pensamentos deveriam estar se refletindo em seu semblante. A situação em casa estava péssima. Havia quase um ano que estava desempregado, vivendo de biscates. Possuía curso técnico de contabilidade, mas desde que a empresa em que trabalhara por dez anos fechara, não conseguiu mais emprego. Entregara a casa em que morava de aluguel e fora morar com a sogra, em Nova Iguaçu. Ele, a esposa e os três filhos dividiam a humilde sala, dormindo no chão.
 - Preciso urgentemente de um emprego... – balbuciou, mais para si mesmo do que em resposta à pergunta do acompanhante.
O trem acabara de encostar em uma estação. Fazendo um esforço sobre-humano, o homem ergueu-se do banco e puxou Paulo para a plataforma.
- Vem comigo...
- Essa não é a minha estação. Vou ficar.
- Pegamos... outro... vem...
Paulo sentiu-se praticamente arrastado para fora do trem. Apesar dos tremores, o homem era bastante forte. Este, ainda segurando a mão de Paulo, torceu a boca em uma careta que o outro entendeu ser um sorriso.
- Eu... pratico... exercícios... o tempo todo... incessantemente...
Paulo sorriu com a piada. Sabia que o outro estava tentando ser agradável. Caminharam para trás na estação. Paulo estranhou. Parecia que o rapaz queria descer unicamente para pegar o outro trem. Apenas para se atrasar.
- Como se chama? – quis saber.
- Não sei...
Encaminhou-se para um banco mais afastado, no final da plataforma.
- Como assim, não sabe como se chama? Sabe onde mora?
- Ainda não...
A resposta fez com que Paulo emudecesse. Sabia que o outro fazia um esforço enorme para falar. Se não queria responder, não insistiria.
Pararam defronte ao banco de cimento da plataforma. Deveriam ser quase nove da noite. Paulo imaginou que chegaria em casa quase à meia-noite.
- Me diga um nome que eu possa chamá-lo.
- João... gosto de João... – fez nova careta e completou – João Ninguém...
Sentou-se e puxou Paulo para que sentasse a seu lado.
- Meu nome é Paulo.
Os tremores não cessavam. João pareceu começar a cair. Paulo fez menção de segurá-lo, mas percebeu que o rapaz abaixava para pegar algo sob o banco. Era um envelope de papel pardo. Entregou-o nas mãos de Paulo.
Paulo examinou o envelope e viu que estava lacrado. Havia uma etiqueta com o endereço de um escritório no centro da cidade.
- Amanhã, às oito... você leva... o envelope... vai conseguir o emprego. Não se atrase...
Paulo ponderou perguntar como João sabia do envelope, mas lembrou que o vira pela primeira vez na estação da Central. Certamente havia deixado o envelope ali, sob o banco, pela manhã. Ao menos teria uma desculpa para dar à esposa e à sogra por ter levado um desconhecido doente para casa: ele lhe prometera um emprego!
Pegaram o trem seguinte e, como Paulo previra, chegaram em casa quase à meia-noite. Da estação de Nova Iguaçu até a casa da sogra, caminharam ainda por quase uma hora. Por sorte, durante a viagem no trem, João voltara a ficar em transe.
Ao chegarem na rua em que Paulo morava com a sogra, João pareceu despertar. Do mesmo modo ao qual o outro estava começando a se familiarizar. Paulatinamente.
Na porta da casa, João caiu ao chão. Sues estertores foram ainda mais fortes que os que Paulo presenciara até então. Da porta, chamou a esposa, que veio correndo. Do chão, João pediu:
- Á... gua...
Só então Paulo lembrou que estavam no mais absoluto jejum desde que se conheceram. Ísis, a esposa, trouxe uma caneca plástica cheia de água. Paulo ajudou o rapaz a beber. Da porta da casa, a sogra observava os homens com olhar desaprovador.
João bebeu a água e pareceu acalmar. Ísis olhou o marido interrogativamente.
- Ele me ajudou a conseguir um emprego. – Mentiu – Está sem comer. Será que sobrou um pedaço de pão?
Silenciosamente, a esposa entrou em busca do que o marido pedira. O cenho franzido mostrava a desaprovação, mas deixaria para discutir o assunto mais tarde, longe das vistas das crianças e da mãe... e do estranho que o marido trouxera.
Esquentou um pouco do café ralo e passou margarina no pão que guardara para o marido. A mãe a observava inquisidora. Estava prestes a repetir que o marido era um vagabundo, que não prestava, mas resolveu poupar a filha naquela noite. Entrou para o próprio quarto e trancou firmemente a porta por dentro.
Ísis retornou para a porta da frente. O homem continuava a sacolejar. Entregou meio pão e uma caneca de café a cada um dos dois e sentou-se no chão, junto a eles. Paulo olhou as próprias mãos enegrecidas de suor e sujeira e decidiu lavar as mãos antes de comer. Pediu que a esposa ajudasse João a se alimentar, pois voltaria logo.
Era realmente uma ajuda inestimável. João não era capaz de segurar nenhum copo de líquido.
Bebeu o café, engasgando e tossindo. Mas recusou o pão.
- Posso... engasgar. Mais... tarde. Obrigado.
Ajudando o homem a beber o café, Ísis se condoeu dele. Deveria ser horrível viver daquela maneira. Não era de se estranhar que fosse tão magro. Gostaria de poder fazer-lhe uma sopa.
- De... que... precisa?
O pensamento estava tão claro, que foi como se respondesse sobre um assunto que estivessem conversando.
- Legumes. E um pedaço de carne.
- Pela... manhã. Pode... ser?
Só nesse instante que se deu conta. Era claro que o pobre miserável não poderia comprar nada daquilo. Por mais barato que fossem os legumes, estava visível que era ainda mais pobre que ela. Sorriu e deu um tapinha carinhoso nas costas da mão trêmula de João:
- Claro.
Quando Paulo voltou, João estava novamente aparvalhado. Levaram-no para dentro, forraram um lençol no chão, junto à parede e o deitaram ali. Paulo contou rapidamente que teria que chegar no centro às oito e que precisaria levantar bem cedo. A esposa resolveu aguardar mais um dia, para que o outro contasse com detalhes o motivo de trazer mais uma boca para a casa da mãe. No outro canto da sala, os dois menores dormiam também no chão. O filho mais velho, de dez anos, dormia no sofá.
Ao acordar, Paulo notou que João já não se encontrava na casa. Melhor assim.
Correu para a estação de trem e pulou o muro.
Por volta das nove horas, bateram na porta da casa. Ísis atendeu e surpreendeu-se ao deparar com João carregando uma sacola. Ainda tremia como antes.
- Seus... legumes.
Não era muito, mas dava para uma boa sopa. Entretanto, preocupou-se com a origem da comida.
Parecendo adivinhar seus pensamentos, João retrucou:
- Não... roubei... Consegue... me... imaginar... correndo... com... uma... sacola?
E emitiu um grunhido com a boca torta, que Ísis entendeu ser uma gargalhada.
A mãe de Ísis surgiu da porta do quarto, evidentemente mal-humorada.
- Ainda está aqui? Agora isso aqui vai virar albergue de cachaceiro? Já não basta o vagabundo?
Ainda sorrindo, João perguntou à dona da casa:
- De que... precisa... para começar... bem o dia?
- Duas coisas: um pão e que você dê o fora daqui.
Sem deixar de sorrir, João abriu a bolsa de compras e retirou um saquinho com alguns pães. Entregou nas mãos da matrona e encaminhou-se chacoalhando para a porta da casa.
Ísis segurou-o pelo braço:
- Volte ao meio-dia, para almoçar, está bem?
- Obrigado... não quero... incomodar...
- Não vai incomodar. Estarei esperando.
João saiu porta afora, balançando todo o corpo.
Ao meio-dia sentou-se no meio-fio, defronte à casa. Estava ainda mais sujo. Ísis pediu ao filho mais velho que lhe levasse um prato de sopa. Da porta de casa viu o pobre homem lutar com a colher e desistir. Deixou o prato sobre a calçada e, como um cachorro, afundou o rosto na sopa. A mulher atravessou correndo a rua para ajudar.
João estava chorando.
- Eu... não consigo... nem comer... sozinho.
Paulo chegou no escritório cujo endereço constava no envelope exatamente às oito da manhã. Durante toda a viagem ficara imaginando o que diria quando chegasse: “Bom dia! Um sujeito me mandou trazer esse envelope e pedir um emprego...”
Aparentemente, João deveria estar com o envelope para entregar ao escritório, a mando de alguém, e o chefe do escritório o contrataria como mensageiro ou algo parecido. Estava bom. Não era o seu ideal, mas no momento, qualquer emprego seria bom.
Era um escritório comercial. Uma secretária na ante-sala atendia como recepcionista. Foi o primeiro a chegar. O escritório abrira às oito.
Mal começou a mostrar o envelope a secretária arregalou os olhos e chamou alguém pelo telefone.
Um senhor apareceu e explicou a Paulo que o contador que estava levando alguns documentos importantíssimos para o escritório teve um enfarto no trajeto e o envelope se perdera. Já estava desesperado, sem saber como faria sem os documentos.
- Você caiu do céu, filho. Só faltaria dizer que está desempregado e que poderia substituir o meu contador...
Paulo surpreendeu-se. Preferiu ocultar o encontro com João, ao menos por enquanto, mas explicou que era Técnico em Contabilidade, que talvez pudesse ajudar.
Talvez pela necessidade, ou pela gratidão. O fato é que o homem contratou Paulo. Em qualquer outra ocasião, o advogado não contrataria um técnico para executar o trabalho de um contador, mas os acontecimentos recentes não eram naturais.
Paulo começou a trabalhar no mesmo instante. Os documentos eram de uma empresa que o escritório estava vendendo. Precisava levar algumas procurações para que os responsáveis pela empresa assinassem. Tarefa simples.
Ana esfregou o rosto na pia com força. Seu filho gritava de dor. O remédio para as dores acabara depois do dinheiro. Fora tentar em vão algum parene que pudesse ajudar, mas em vão. Eram tempos difíceis. Lembrou dos dois bilhetes que encontrara no chão, ao sair do metrô. Fez bem em dar ao rapaz doente.
Sentou na beirada da cama e teve vontade de chorar. O filho sentia dores terríveis no fígado. Era o câncer. Fechou os olhos e lembrou das palavras do rapaz doente. Como se mecanicamente, repetiu o mesmo carinho que fizera no moço. Afagou os ralos cabelos do filho. Teve vontade de cantar. Que mal poderia haver? Cantou.Uma, duas, três músicas. Foi emendando uma música a outra até que perdeu a conta de quantas canções foram. Nem se deu conta em que momento o menino dormiu.

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