sábado, 25 de agosto de 2012

Antônios

Trecho da Obra:
Antônios
Os muitos Antônios que foi Antônio Conselheiro.

[...]Anos depois, entrou na Bahia, na cidade de Itapicuru. Atrás de si, deixara um rastro de vilarejos reformados e um sem-número de cognomes: Bom Pastor, Antônio dos Mares, Santo Antônio dos Mares, Santo Antônio Aparecido, Bom Jesus Conselheiro, Bom Jesus do Sertão, Santo Antônio do Sertão e muitos outros. O nome Bom Jesus foi adquirido em função da exclamação que sempre usava: O Bom Jesus lhe abençoe, Bom Jesus lhe cuide, Bom Jesus lhe acompanhe, etc.


O título de Santo o incomodava por demais, mas o tratamento já era quase um apelido. De todos, o que menos o incomodava era o título de Conselheiro. Preferia ser chamado assim a Santo ou Bom Jesus.
Outra vez, faz-se necessário chamar a atenção para um singelo detalhe na vida de Antônio Conselheiro e o modo como foi abandonado pelos historiadores, que se deixaram levar pelas informações deslocadas dos fatos.

Já nessa época, após o contato com o Padre Antônio Ibiapina, Antônio Conselheiro passa a celebrar casamentos. Como fora um devotado cristão por toda a vida, além de ter trabalhado como Advogado dos Pobres, essas experiências lhe dão a capacidade de realizar casamentos.

Nos vilarejos por onde passa, encontra casais vivendo maritalmente, por vezes até com filhos e netos, sem estarem ligados aos olhos de Deus e dos homens.

Os vilarejos possuíam capelas para o padre itinerante, mas, em função da seca prolongada, era natural que o clérigo passasse até uma década sem aparecer para celebrar uma missa sequer. Ao chegar nesses lugares, Antônio Conselheiro realizava os casamentos.

Quando os moradores de alguma localidade ficavam sabendo da iminente chegada do andarilho, era comum as moças procurarem seus namorados e os instassem a se preparar para ter seu casamento celebrado pelo famoso santo. E, se havia algo que iluminava o rosto do Conselheiro era celebrar a união de dois amantes.
Nessas épocas, as cidades recebiam a Antônio com festas. Os casais estavam já formados e a celebração preparada. Antônio realizava vários casamentos de uma só vez e a cidade passava dias em comemoração pelas bodas de tantos filhos.

Santo Antônio do Bom Conselho, Santo Antônio Bom Pastor,  Santo Antônio dos Mares... e a Igreja Católica nos diz que o Santo Antônio Casamenteiro do folclore nordestino é o Santo Antônio de Pádua, um santo de origem italiana, que só é conhecido como casamenteiro no Brasil, pois o santo casamenteiro do catolicismo no mundo é  São Valentim.

Mesmo depois, quando já estava estabelecido em Canudos, Antônio Conselheiro ainda celebraria diversos casamentos. Muitos dos quais ele mesmo se encarregara de apresentar o noivo à noiva, como fizera tantas vezes nas diversas cidades por onde passara e dera bons conselhos a jovens apaixonados.

Os rapazes tímidos o procuravam para pedir que lhes desse um conselho em como conquistar determinada moça, ou que lhes servisse de padrinho e fosse conversar com o futuro sogro a fim de que pedisse a mão da moça.

Por todo o sertão, as moças em idade de casamento faziam promessas para a próxima visita do santo à cidade.

Para evitar alimentar o misticismo sobre a figura de Antônio Conselheiro, justamente no momento em que a Igreja Católica brasileira se entendia com os representantes da nova República, esta se encarregou de criar a confusão com os Antônios: o de Pádua e o Conselheiro. Bastaram alguns anos para que o Santo Antônio Casamenteiro passasse a ser o Santo Antônio de Pádua, considerado pela Igreja como o único Santo Antônio.

Entrando em Itapicuru, carregava novamente consigo uma verdadeira multidão de seguidores. O povo o amava e respeitava. Todavia, junto com a admiração do humilde tabaréu, angariara o ódio das autoridades e do clero. Aziagamente, o Juiz de Itapicuru era o Dr. Arlindo Leoni, que fora transferido de Santa Quitéria para lá, haviam dois anos.

Ao saber da proximidade do peregrino, chamou o delegado de polícia e instou-o a prendê-lo devido ao assassinato da própria esposa e da mãe, em Quixeramobim.

Esta é outra das lendas envolvendo o Conselheiro ainda em vida. Se o autor foi realmente o Juiz Leoni, ou se este apenas o ouviu de alguém, não se sabe, mas o fato é que espalhou-se em Itapicuru, depois pela Bahia e finalmente por todo o Brasil, a história que sua mãe descobrira que a esposa o andava traindo e resolvera ajudá-lo a dar um flagrante na adúltera. Como não sabia como fazê-lo, a mulher teria instado o filho a se ocultar no matagal perto de casa, armado com um rifle e aguardar. Em seguida, a velha teria colocado roupas de homem e pulado a janela do quarto da nora. Entretanto, completamente fora de si, Antônio Maciel ao ver um homem pulando a janela de seus aposentos, teria disparado a arma dali mesmo, matando a mãe. Ao verificar o erro cometido, teria assassinado também a esposa.

Ocorre que, na verdade, a mãe de Antônio Maciel morrera quando este contava cinco anos de idade. Depois, seu pai casara novamente, com uma mulher chamada Francisca Maria da Conceição, que morreu em 1856, um ano antes de Antônio conhecer Brasilina e casar.

Mas o Delegado Francisco Pereira Assunção apenas conhecia o boato e juntou uma milícia para prendê-lo. Encontrou-o entre uma centena de seguidores. Para evitar um massacre, Antônio Conselheiro, serenamente se ofereceu para ir junto com o Delegado para Itapicuru, desfazer o mal-entendido.

Antônio contava então quarenta e seis anos de idade, usava o cabelo e barba compridos, um batinão azul, cingido à cintura por um cordão e alpercatas de couro. Sua voz era mansa e seu comportamento tranqüilo.
Era a tarde do dia dezessete de junho de 1876. Dirigindo-se aos seguidores, pediu que se mantivessem tranqüilos, pois ficaria afastado deles durante alguns dias.

Uma mulher, chorosa, insistiu:

- Mas quando o senhor volta, Conselheiro? Que dia?

- Anotem aí – ordenou – estarei em liberdade no dia primeiro de agosto desse ano.

Caminhou para fora do acampamento conversando serenamente com o delegado, que o tratava cortesmente. Algumas pessoas seguiam o grupo à distância. Ao alcançarem a estrada que levava a Itapicuru, o delegado Assunção fez alto no grupo. Uniu as mãos do prisioneiro às costas e algemou-o. A turba, que os seguia ao longe acorreu, indignada e furiosa, protestando contra mais aquela humilhação. A um sinal do delegado, os policiais formaram fileira, apontando suas carabinas em direção ao populacho, que amedrontado, estacou.

Sorridente, Francisco Pereira Assunção adentrou Itapicuru arrastando atrás de si o famigerado Antônio Vicente Mendes Maciel, o Conselheiro.

Encarcerado, Antônio aguardava julgamento, por um crime sem corpo, sem testemunhas, nem armas. Mesmo para a época, a acusação era absurda, a prisão era indecente.
A notícia se espalhou pelo norte e nordeste brasileiros. Romarias de diversos cantos do País dirigiram-se para a Bahia.
O Juiz Arlindo Leoni foi pessoalmente à cadeia para interrogar diretamente o prisioneiro. Ao vê-lo entrar na carceragem, Antônio finalmente compreendeu o real motivo da sua prisão.

O magistrado observou o preso dos pés à cabeça, torcendo o nariz. Franziu o cenho para o carcereiro e indagou:

- Como o senhor quer que eu entre nessa cela com esse homem imundo do jeito que está? Dê-lhe um banho, elimine seus piolhos e depois me avise. Espero não encontrar nenhuma surpresa na próxima vez que retornar aqui.

Dito isto, Arlindo Leoni deu meia-volta e dirigiu-se para a saída da cadeia.

Acostumado a cumprir ordens, o cabo Rosevaldo não discutiu. Sabia que o Conselheiro estava tão limpo ou até mais que o próprio Juiz, mas sequer pestanejou. Mandou que trouxessem água, navalha e sabão. Chamou a guarda e ordenou que o barbeassem, aparassem seus cabelos e o lavassem. Meia hora depois, o Conselheiro tivera cabelos e barbas rapados, em meio a socos e pontapés. Durante toda a sessão de tortura, não emitiu um único gemido.

Algum tempo depois, Dr. Leoni adentrava a cela, defrontando-se com o homem que apresentava diversos hematomas.

- Eis que nos encontramos novamente, não senhor Antônio?

Calado, Antônio preferiu não responder.

- Bem, vejamos... – iniciou, folheando uma pasta repleta de anotações – vejo aqui que depois de assassinar a sua mãe e depois a esposa, o senhor andou bem ocupado...

Antônio sabia que o Juiz imaginava que Joana Imaginária fosse sua esposa. Pretendia acusá-lo de um crime que ele próprio fora o mandante. Provavelmente seu interesse era o de pedir a sua execução. Se iniciasse qualquer defesa, daria mais condições ao Juiz para que conseguisse sua condenação. Melhor seria evitar discutir o assunto, para que Leoni formalizasse a acusação. Somente aí faria sua defesa.

Antônio olhou duramente para o Juiz:

- Tanto você quanto eu bem sabemos o que pretende. Que tal deixar de rodeios e ir direto ao ponto? Vai me acusar logo ou não?

Lívido de ódio, o juiz ergueu-se do banco onde estivera sentado e desferiu sonora bofetada no rosto do prisioneiro. O tapa foi tão forte que os ossos da mão do gordo magistrado doeram profundamente. O guarda que se encontrava junto à porta da cela, ao ver o juiz agredir o preso, entrou na cela e passou a bater também. Em instantes, o homem desmaiou.

Antônio Conselheiro era um homem franzino, magro, de baixa estatura. A alimentação diminuta, pobre em conteúdo calórico, quase toda à base de leguminosas, completava a fragilidade do corpo. Por sorte, pois a intenção do avantajado guarda era prosseguir batendo, até esfolar totalmente o bandido. O Juiz Arlindo Leoni, satisfeito com a entrevista, retornou para o tribunal. Entregou ao escrivão um rascunho onde constava que o preso, interrogado, recusara-se a responder as perguntas da autoridade.

A notícia da prisão de Antônio Conselheiro espalhou-se como rastilho de pólvora pelo sertão. Seus seguidores, espalhados pelos diversos vilarejos do nordeste, imediatamente formaram grupos e se encaminharam para Itapicuru. O temor generalizado era que morresse na cadeia, vítima de algum mal fulminante, como era comum aos presos políticos de então.

Em Itapicuru, as pessoas foram aparecendo. A cada dia, um número maior de sertanejos circulava dolentemente pela cidade, causando apreensão nas autoridades.

- O homem foi preso há apenas três dias e já circulam mais de quinhentos estranhos pelas cercanias da delegacia. Alguns cometeram o disparate de acampar defronte à cadeia! – exclamou o Delegado.

Reunidos no Tribunal de Justiça, o Delegado, o Juiz, o Prefeito, o Promotor e o Defensor Público, discutiam as ações a tomar. Eram todos unânimes no desejo de atender a vontade do influente magistrado: condenar à morte o famigerado anarquista. O Promotor tomou a palavra:

- O Delegado deveria encarcerar cada um destes vagabundos. Os outros imediatamente fugiriam amedrontados.

Francisco Assunção sorriu ironicamente para o Promotor:

- São cerca de uma centena! Não tem cadeia suficiente para todos...

- Prenda os líderes! – insistiu o outro.

- Senhores! – chamou o Defensor – mais preocupante que os sertanejos que já estão na cidade, é a romaria de seguidores que se encaminha para cá!

- Verdade, Excelência – ajuntou o Delegado Assunção – sem contar os cerca de cem que chegam por dia, há relatos de Salvador que indicam cerca de dez mil pessoas viajando para cá, a maioria a pé. Temo que qualquer atitude impensada nos ponha à mercê desses fanáticos.

- Peça milícias à Capital, solicite um batalhão do Exército ao Imperador... – aconselhou o Juiz.

- Perdoe, Meritíssimo – desculpou-se novamente Assunção – mas se fosse para uma cidade mais importante, o governo até enviaria tropas, mas para Itapicuru? Duvido muito que enviem tropas ou reforços policiais.

- Por que não o mandamos para que seja julgado na Capital? – sugeriu o Promotor – Além de nos livrarmos do problema, ainda faremos esses vagabundos darem outra boa caminhada. E na Capital, a Guarda Imperial e o exército podem muito bem prender todos esses arruaceiros.

A idéia foi aplaudida por unanimidade. Rapidamente, foram todos para seus escritórios aviar a transferência do prisioneiro, cada qual com a sua responsabilidade. O Delegado Assunção redigiu o seguinte documento ao Chefe de Polícia, João Bernardo de Magalhães:

“Delegacia da villa de Itapicurú, 28 de Junho de 1876

Ilm. Sr. - Ao sr. alferes Diogo Antônio Bahia, comandante da força que v.s. remeteu a esta villa por minha requisição, não só para manter a ordem e o respeito devidos à autoridade, como para conduzir o preso Antônio Vicente Mendes Maciel, entreguei não só o mesmo preso, como ainda outro, de nome Paulo José da Rosa, que se achavam aqui detidos por ordem de v.s. para serem remetidos à secretaria, segundo me ordenou em officio de 15 de abril último. Em presença da força, desistiram os fanáticos do plano entre elles combinado da desmoralização à autoridade, pois só essa providência os faria conter desse propósito; sendo certo que agora propalam – que o farão na volta do seu Sancto Antônio, como chamam o primeiro dos presos; o que contam por certo.

A’ vista desse máu plano que, em face das circunstâncias, executarão, peço a v.s. para dar providências, a fim de que não volte o dito fanatizador do povo ignorante; e creio que v.s. assim o fará, porque não deixará de saber da notícia, que há mezes apareceu, de ser elle criminoso de morte na provincia do Ceará.

Também aproveito a occasião para remetter a v.s. pelo mesmo alferes os individuos de nomes José Manoel e Estevam; o primeiro recrutei pra o exercito, visto não apresentar isenção alguma, não ter pae nem mãe, e não ter emprego nenhum conhecido, senão o de larapio; pois ha poucos dias furtou a uma pobre viúva 60$, que ella reservava de suas economias para suas precisões, e os deu quasi todo a mulheres perdidas. E o segundo, por denuncia que tive de ser captivo de uma viuva, residente no Porto da Folha, na província de Sergipe, e andar aqui constantemente embriagado, e insultando as autoridade, como ha pouco acaba de praticar com o dr. juiz de direito desta comarca.

Esses indivíduos são fanatizados e partidários do preso Antônio Vicente Mendes Maciel.

Deus guarde a v.s. Illm. Sr. de. João Bernardes de Magalhães , m.d. chefe de polícia desta provincia. – o delegado em exercicio, Francisco Pereira da Assumpção"
( Apud Aristides Milton, 1902, p.10)

Em poucos dias, durante a madrugada, saindo pelos fundos da cadeia, despistando os seguidores do Conselheiro, os presos foram transferidos para Salvador. Os sertanejos, cada vez mais numerosos em Itapicuru, ainda levariam alguns dias até saber a localização do peregrino. Como chegaram, desapareceram da pequena cidade no interior bahiano.

Apresentado ao tribunal de Salvador, finalmente pode apresentar sua defesa. Solicitou ao Juiz permissão para defender-se sozinho, sem auxílio do Defensor. Autorizado, solicitou a imediata libertação, pois a sua mãe, conforme poderia ser confirmado através do atestado de óbito da cidade de Quixeramobim, morrera quando contava cinco anos e sua esposa, ainda vivia, no Ceará.

Surpreso, o magistrado ordenou que o encarcerassem novamente, até que se apurassem os fatos.

Por todo o país a notícia da prisão de Antônio Conselheiro provocou comoção. Até mesmo na Capital do Império, Rio de Janeiro, a notícia foi divulgada nos jornais. Tornava-se cada vez mais nítido o embuste. O Juiz Arlindo Leoni, que emitira o mandato de busca e captura encontrar-se-ia em maus lençóis, caso ficasse comprovada a inocência do réu.

Mesmo para a época, não era usual prender-se um homem baseando-se em boatos sequer investigados. O erro aparentava ser tão grosseiro que colocava a própria magistratura na berlinda.

Colocado a par do evidente erro pelo Juiz, o Chefe de Polícia da Bahia enviou ofício ao seu colega do Ceará, solicitando informações a respeito do caso.

Alfredo apeou da charrete defronte ao Tribunal e encaminhou-se à sua sala. Estava perto da aposentadoria. Aguardava apenas a chegada do substituto para abandonar o sertão e voltar ao Rio de Janeiro.

Alfredo Alves Matheus, Juiz Municipal de Quixeramobim, no Ceará era um homem reto e honesto. Excelente pai e marido, procurava julgar seus casos com a mesma dose de amor e severidade com que criara os filhos.

Enquanto subia os degraus da entrada do tribunal, Alfredo repesava a decisão que teria que tomar. Conhecera Antônio Maciel no próprio tribunal, onde ainda rapazote, trabalhara como escrivão. Como todos na cidade, ficara profundamente entristecido quando soubera que o jovem e promissor advogado abandonara a carreira para mudar-se de cidade e afastar a esposa do amante que arranjara. Depois de anos passados, surpreendeu-se ao ler nos jornais notícias de que aquele jovem franzino e calado teria se tornado um beato, com até mesmo a fama de santo milagreiro do sertão.

Entrou no escritório e chamou o escrivão, indagando se já havia encontrado o registro do óbito da mãe de Antônio, bem como o paradeiro de Brasilina. Em seguida à leitura do depoimento da esposa e o atestado de óbito, escreveu ao colega Juiz de Salvador, informando da inocência do réu.

Duas semanas depois, recebeu uma carta pessoal do Juiz Arlindo Leoni, solicitando que se investigasse mais a vida do beato, de modo a conseguir elementos que o pudessem manter na prisão, ou mesmo ser executado, visto que a sua presença no sertão incomodava as autoridades.

Enojado com a carta do colega, resolveu agir. Em carta ao Tribunal de Justiça da Bahia, solicitou que o preso, em vista de ser acusado de um crime cometido em Quixeramobim, deveria ser imediatamente transferido para aquela província, onde seria julgado e condenado, nas formas da lei. Alfredo tomou essa iniciativa por temer pela vida do Conselheiro, se insistisse em sua liberdade.

Imaginando que Antônio Conselheiro seria finalmente condenado, João Bernardo de Magalhães, o Chefe de Polícia da Bahia escreveu ao Chefe de Polícia do Ceará:

"Secretaria da Policia da Provincia da Bahia, em 5 de julho de 1876. 2a Secção, no 2.182. – Ao dr. Chefe de Polícia do Ceará.

Faço apresentar a V. S. o individuo que se diz chamar Antonio Vicente Mendes Maciel conhecido por Antonio Conselheiro, que suspeito ser algum dos criminosos dessa provincia, que andam foragidos.

Esse individuo appareceu ultimamente no logar denominado Missão da Saúde do termo de Itapicurú, e, ahi, entre gente ignorante, disse-se enviado de Christo, e começou a prégar, levando a superstição de tal gente ao ponto de um fanatismo perigoso.

Em suas prédicas plantava o desrespeito ao vigario daquella freguesia, e cercado de uma multidão de adeptos começara a desasocegar tranquillidade da população.

Em virtude da reclamação que recebi do exm. sr. vigário capitular, contra o abusivo procedimento desse individuo, que ia, além de tudo, embolsando os dinheiros com que, credulos, iam lhe enchendo as algibeiras, os seus fieis, mandei-o buscar à Capital, onde, obstinadamente, não quiz responder ao interrogatorio que lhe foi feito, como verá v.s. do auto junto.

Era uma medida de ordem pública, de que não devia eu prescindir. Entretanto, si por ventura não fôr elle ahi criminoso, peço em todo caso, a v.s. que não perca de sobre elle as suas vistas, para que não volte a esta provincia, ao logar referido, para onde a sua volta trará certamente resultados desagradaveis pela exaltação em que ficaram os espiritos dos phanaticos com a prisão do seu idolo. – J.B. de Magalhães."
(Apud Aristides Milton, 1902, p.12)

É importante observar que já o Chefe de Polícia não falava mais em crime de assassinato, Antônio agora seria acusado de novo crime: incitar a quebra da ordem pública. Aziagamente, a acusação já havia sido formalizada. Oficialmente, estava preso por suspeita de assassinato.

Na viagem de navio para o Ceará, Antônio foi duramente torturado por seus condutores. Desceu do navio completamente desacordado, carregado em uma padiola improvisada pelos outros presos.

Ao saber de sua chegada, Dr. Alfredo Matheus foi visitá-lo na cadeia. Irritou-se profundamente com seu aspecto e determinou que os guardas que o acompanharam fossem presos.

Dr. Alfredo, Juiz de Quixeramobim, adentrou a enfermaria da cadeia pública. Antônio encontrava-se deitado a uma maca, rosto inchado, coberto de hematomas. Seus pulsos dilacerados pelas algemas, estavam cobertos por bandagens.

Dr. Alfredo quase não reconheceu o homem pacato com quem trabalhara, tão deformadamente inchado seu rosto se encontrava.

- Olá, meu amigo... – pousou a mão sobre o ombro do enfermo, que abriu um dos olhos, pois o outro encontrava-se fechado por um inchaço.

- Excelência... – balbuciou Antônio, com muita dificuldade de mover os lábios partidos. Fez menção de erguer-se, mas foi contido pela mão do juiz.

- Precisa descansar. Amanhã torno a visitá-lo. Pode ficar tranqüilo que aquela acusação absurda foi retirada.

Antônio fechou os olhos e caiu em sono profundo imediatamente. Sonhou que estava no interior do navio, observando os homens que o colocavam no porão, ainda na Bahia.

Encontrava-se sentado a um canto do porão. Ouviu um barulho no topo da escada de ferro que levava ao convés e olhou para o alto. Dois homens, usando as fardas da polícia estadual da Bahia, arrastavam um homem magro, cabelo e barba raspados, mãos algemadas às costas. Entre socos e pontapés, derrubaram-no do alto da escadaria. O homem desceu as escadas de bruços, escorregando. A cada degrau, seu rosto batia nas pequenas plataformas de ferro. Chegou ao último degrau batendo fortemente a testa no chão.

Antônio ergueu-se assustado. O homem caído era ele próprio! A seu lado, uma voz fez com que virasse a cabeça.

- Os homens são capazes de crueldades impensáveis, desde que possuam o poder nas mãos.

- Que poder têm esses pobres diabos? – indagou Antônio.

- Veja por si mesmo – ordenou o homem vestido por uma espécie de batina branca, encimada por um capuz, que impedia que seu interlocutor visse seu rosto – o homem está à mercê deles. Está em seu poder. Este exemplo vale para toda a humanidade: poder sem coerência e bondade, sempre causa dor e horrores.

- Quem possui um poder qualquer, sobre qualquer outro ser, deveria demonstrar ainda mais responsabilidade. – sentenciou o Conselheiro.

- Você acaba de pronunciar a primeira das leis que deverá seguir, se desejar prosseguir nessa vida de peregrinação.

- Eu não quero ser peregrino, não quero ser nenhum santo! – exclamou aborrecido – somente desejo emprestar minha experiência ao meu irmão sertanejo, de modo que deixe de sofrer com a seca.

Os guardas desciam a escada, vagarosamente, sorrindo com a posição do homem de batina azul, deitado com o rosto no chão e o corpo inclinado, apoiado nos degraus da escada. Um deles chutou as pernas do homem, para afastá-las da passagem estreita.

- A sua vontade é, de tudo, o que menos importa – sentenciou seu interlocutor. – Os acontecimentos, quando se alcança um poder sobre as pessoas, tornam-se inexoráveis. Como um rastilho de pólvora aceso, todas as ocorrências se dirigem para um único fim, independente da sua vontade.
Os soldados pegaram o corpo desacordado do preso e o arrastaram até um canto, onde algumas correntes presas ao madeirame do costado indicavam a sua função. Acorrentaram os braços do prisioneiro às argolas e afastaram-se um pouco. Um deles pegou um balde e subiu correndo a escada.

O homem encapuzado segurou o braço de Antônio chamando:

- Venha assistir uma ocorrência...

A atmosfera em torno dos dois tornou-se esfumada, nebulosa. Em seguida, estavam em pleno sertão. Um homem, que Antônio imediatamente reconheceu como sendo o soldado que ficara no porão, corria atrás de uma menina de cerca de doze ou treze anos. Em dado momento, finalmente a alcançou, segurando seus cabelos e jogando-a ao chão de barro seco. Em poucos instantes, batendo a cabeça da pobre mocinha ao solo, rasgou suas roupas e a violentou.

- Preciso realmente assistir isto? – indagou encolerizado Antônio.

- Não. - respondeu o outro.

Com a negativa, novamente a atmosfera tornou-se nublada e retornaram ao porão. O soldado encontrava-se de pé, defronte ao homem acorrentado. Repentinamente, o soldado desferiu-lhe violento chute nos quadris. Ambos gemeram. Ouviu-se um estalido de ossos, que Antônio a princípio imaginara ser do preso, mas logo observou que o soldado havia quebrado alguns dedos com o chute.

Novamente, a visão do Conselheiro tornou-se nublada. Retornaram ao mesmo pedaço da caatinga onde o soldado violentara a menina.

A menina olhou de longe para o homem e percebeu seu olhar sedento. Adivinhando problemas, afastou-se caminhando rapidamente na direção oposta. O soldado tentou apressar o passo em direção à mocinha, mas claudicava doloridamente. Olhou para os dedos dos pés, à mostra, fora das tiras de couro das alpercatas. Os dedos estavam necrosados. Pela rouxidão e inchaço que apresentavam, em breve a gangrena obrigaria que as falanges fossem decepadas. Antônio sorriu, enquanto observava a menina distanciando-se do homem cuja decepção estampava-se em seu rosto.

De volta ao porão, o homem massageava os dedos dos pés por cima da ponta da sandália. O outro homem descia a escada, carregando o balde com a água que fora buscar. Ainda descendo os degraus, jogou o conteúdo do balde sobre o prisioneiro, que despertou.Outra vez, a paisagem desapareceu.

Antônio e seu acompanhante encontravam-se agora em meio a uma multidão, que parecia reunida para protestar por algo, defronte ao Palácio de Justiça da Bahia. Um grupo de policiais estava formado entre a multidão e a entrada do Palácio. Um dos milicianos era o soldado que subira ao convés para encher o balde com água. Este, repentinamente, sacou uma garrucha e disparou. Adiante, um homem pôs a mão no peito e caiu pesadamente ao solo. Os populares, ouvindo o disparo e vendo o homem cair, avançaram sobre os policiais. Os soldados, armados de fuzis, dispararam sobre a multidão. Aqui e ali, pessoas tombavam, mas o povaréu estava cego de ódio. Massacraram cada um dos milicianos que não conseguiu escapulir. Uma tropa a cavalo chegou, disparando suas armas e agitando suas espadas contra as pessoas. Em poucos instantes, a praça estava coberta de corpos. Por alto, Antônio calculava cerca de uma centena, entre mortos e feridos.
O Conselheiro olhou para o homem encapuzado que manteve-se calado, mas novamente a cena mudou. Voltaram para o porão do navio. O homem que trouxera o balde ergueu o preso pela gola do roupão com a mão esquerda e com a direita desferiu-lhe violento soco no rosto, que inchou de imediato.

Em um rápido esfumar do ambiente, Antônio e seu acompanhante encontraram-se em um aposento. O soldado estava sentado à beira de um catre, massageando os ossos da mão dolorida. A cena e o local mudaram novamente, retornando para a praça onde a multidão reunida, protestava. O soldado sacou a garrucha, mas esta caiu da sua mão, cujos ossos e juntas encontravam-se muito inchados. O sargento a seu lado, ao ver o ocorrido, rapidamente recolheu a arma caída e indagou rosnando:

- Está bêbado, soldado? Volte imediatamente para o quartel antes que faça alguma bobagem aqui.

A multidão nem se apercebeu do rápido diálogo entre o sargento e o soldado, enquanto este, humilhado, passava pelo meio da tropa, obedecendo à ordem do superior.

Em instantes, encontravam-se novamente no porão do navio. O soldado ainda encontrava-se segurando o prisioneiro pela gola. O homem de capuz perguntou a Antônio:

- Ele pode dar outro soco?

- Deve! – sorriu o Conselheiro.

- Agora você compreendeu a segunda lei que deverá seguir: cada acontecimento, por mais banal que possa parecer, possui um efeito em outro tempo e lugar.

- Por isso devemos amar nosso desafeto. Oferecer a outra face... – observou o Conselheiro.

- Exatamente. – corroborou o homem encapuzado.

Enquanto os homens espancavam o corpo de Antônio, uma chuva de raios dourados começou a cair sobre ele, que desmaiou novamente. Os finos raios continuaram a cair por algum tempo, mesmo depois que os homens deixaram de espancá-lo.

Em seguida, Antônio sentiu que a chuva se deslocara pelo porão do navio e agora caía sobre a sua cabeça. Foi sentindo-se imensamente feliz e abençoado por estar vivendo aquele momento. Tudo escureceu e abriu os olhos. Estava de volta à enfermaria. A noite ia avançada.

Em Salvador, o Cardeal Emiliano Koersh dialogava com o Arcebispo Dom Luis José.

- E se esse tal de Antônio for mesmo um santo, Eminência? – indagou o Arcebispo.

- Se ele fosse santo nós não estaríamos tendo esta conversa, bispo. Me admiro o senhor se deixar levar por uma boataria como essa.

- Nós temos o relatório do Padre Ibiapina.

- Aquele é outro aproveitador – observou o cardeal – a santa madre igreja há de puni-lo exemplarmente. Ele está ajudando a incitar o povo contra a igreja e contra o estado.

- Volto a insistir, meu padre – ponderou o clérigo – que podemos estar crucificando um santo...

O Cardeal ficou vermelho. Não estava acostumado a ver suas ordens desobedecidas.

- Bispo! Será que devo crer que o senhor também pretende insurgir-se contra a madre igreja?

O cardeal rodeou a mesa e parou diante da janela. A praça defronte a catedral encontrava-se bastante movimentada. Diversos sertanejos ainda se encontravam circulando por ali.

- Se o tal do Antônio fosse realmente um santo não estaria levando tantos inocentes a confrontarem-se com as autoridades. Além disso, finalmente conseguimos acertar um bom acordo com os militares que estão prestes a tomar o poder, enquanto ainda mantemos boas relações com o Imperador. Já imaginou se tivéssemos que nos relacionar e passear abraçados com um sujeito que se diz abertamente um abolicionista e revolucionário? Isso significaria nos declararmos abertamente contra o Imperador e o que é pior, contra os presidentes de província.

“Não, meu bom amigo. Este homem é inimigo do Imperador,  é inimigo do Império e inimigo da igreja”.
Compreendendo que a ordem do Cardeal seria executada, independente do que fizesse, o bispo anuiu.

- O que faço com o relatório do Padre Ibiapina, senhor? – indagou.

- Uma fogueira! – e saiu sorrindo com a piada que fizera.

O bispo ainda teria muito com que se preocupar. Precisava apagar da memória do sertanejo a memória do Santo Antônio Conselheiro. Além disso, ainda havia  o padre Antônio Ibiapina. [...]

Este livro recebeu o prêmio Nacional de Novelas Históricas do Governo da Bahia e será publicado em breve. 

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